29 de dez. de 2010

Reminiscências.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)

Fernando Pessoa*


Cara Pilar,

Hoje é domingo, está um frio de rachar os ossos, caí uma névoa fina lá fora, ando observando tudo pela janela. As crianças do vizinho estão brincando na escada, os animais se acasalam cheios de excitação e a lua nos ilumina.

Que saudades sua! No meu peito arde uma vontade imensa de reencontrá-la, observar sua face, tocar suas mãos, abraçá-la lentamente ao som da nossa música predileta, você lembra qual é?

Ah minha rara, que bons momentos vivemos juntas. Os fins de tarde no banco da praça, os namoricos sem futuro, as farras na praia, a formatura, o nascimento das crianças, o beijo do grande dia, aquele "quase" acidente na avenida principal, uma possível tragédia que cessaria muitos dos nossos sonhos. Não gosto nem de recordar...

Hoje escrevo para compartilhar doces momentos. Cada gole que dou no café desce rasgando de saudade, pelas lembranças que guardamos juntas, pelas melancolias compartilhadas em tempos de escassez e pelas doses de entusiasmos que aprendemos a presentear uma a outra.

Se estivesse sentada ao meu lado nessa poltrona, provavelmente perguntaria pelas crianças e pelo Moreno, não é esse o jeito carinhoso que você os chama até hoje? Já me adianto em responder sua pergunta para que não fique cheia de curiosidades. As "crianças" estão lá em cima com as esposas, jogando algum tipo de pôker barulento, suponho pela bagunça que se faz ouvir aqui de baixo. Seu moreno, provavelmente, deva ser o mais animado da trupe, ouço seus gritos de empolgação de longe, aqueles mesmos dos velhos tempos.

Estamos todos de férias, esquecidos das obrigações e da seriedade.

Retirei-me um pouco da presença deles apenas para te escrever, senti uma vontade imensa de te compartilhar minhas alegrias. Já retornarei para o meu bando, que espera com paciência minha paixão pela pena, fato tão sabido por eles nesses anos todos de convivência.

É minha amiga, ter sessenta anos me concede alguns privilégios. É realização, é encontro, é a perpetuação de nobres escolhas.

Ainda me aventuro na Ciência tão conflituosa que escolhi para exercer, mesmo que hoje prefira o deleite das viagens, das poesias e do pôker com a crianças.

No amor continuo errante, cambaleando na linha tênue da graça e da perdição. Eu e ele não contamos mais os dias 23 como antigamente, a gente vai vivendo, se encontrando, se desejando... E isso basta pro nosso amor, que resiste aos mais pueris delírios.

Hoje não me conheço melhor que ontem, triste de quem alimenta essa ideia mentirosa de conhecimento a longo prazo. Conheço-me menos,  me espanto mais, convivo apenas melhor com minha ex-periência.

Bem, já reconheço que não digo coisas tão interessantes como no início, talvez você já esteja cansada dessa velha amiga imaginativa de sempre, por isso começo a me despedir de você. Vou parando por aqui, pelo menos por hoje. Um dia acrescento mais palavras; mais silêncios, quem sabe. Agora vou voltar pra eles, pois eles já começam a ter ciúme de você. Espero que fique bem, que cuide da sua mocidade, que leia cada letra como um afago e que isso lhe traga esperança, mesmo que momentaneamente.



Sinto sua falta, sinto nossa falta.



Com paixão,


P.


______________________________

*Trecho retirado do poema - Cansa sentir quando se pensa - Fernando Pessoa

5 comentários:

  1. Meus personagens são mais fortes que eu.

    Vaí ver é isso ...

    beijos

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  2. por um instante, eu me senti a "P". E lágrimas rolaram pela minha face.
    Este texto me fez lembrar (e sentir) a minha amiga de infância.. e que hoje, quase nem nos falamos mais.
    Você me fez chorar, thami. Esta me devendo essa ;)

    Muito lindo, beijos :*

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  3. Rê, nem te conto algo que pensei essa semana sobre isso ... um dia terei a oportunidade de dizer.
    Mas fiquei emocionada com o seu comentário,
    isso acontece quando a gente se doa,sabe?
    Quando a gente Lê, canta, escreve, atua com todos os nossos nervos expostos.
    Vai ver foi isso e o crédito é todo seu.

    cada dia mais feliz pela sua presença!

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  4. Ah, conte-me sim.
    Quero que esta oportunidade chegue logo.
    Sou curiosa e ansiosa ;)
    Fico feliz em que você fica feliz *--*
    Eu já te gosto tanto, tanto Thami :D

    -
    Ahh, assim.. eu sou toda extrema e intensa. Choro fácil, rio fácil.
    Mas, fazia um bom tempo que eu não chorava por um texto tão lindo. *-*

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