Sala de espera para o atendimento em saúde mental, saúde pública, como sempre o amontoado de gente para passar com o doutor. Espaço estranho, cheio de pessoas que se entreolham com medo de que o outro ao seu lado arranque seu segredo, ao mesmo tempo em que deseja encontrar a resposta para seu sofrimento. Resposta que fica atravessada na garganta, como um espinho de peixe que não desce nem com o maior pedaço de pão seco engolido.
A recepcionista que sequer olhava para o rosto de quem se aproximava, ao ser indagada a respeito do atendimento do doutor apontava para o banco de concreto no corredor e repetia como se fosse uma daquelas secretárias eletrônicas: – O doutor irá atender pela ordem de chegada, é só esperar! Após essas breves intervenções o silêncio voltava a imperar no local, da mesma maneira como geralmente costuma-se observar nos velórios, nos conventos, nos lugares da ansiedade frente à finitude da existência, silêncio que lembra mais a morte que a vida, aliás, às vezes o espaço dado para tratar a saúde mental parece querer enlouquecer, parece ser ao invés de um lugar de vida um lugar de morte. E de fato podemos dizer que o é, se isso significar a morte do indivíduo que até então era visto como normal, como saudável e o nascimento do indivíduo tratado. Indivíduo curado? Não! Curado não! Aí já seria querer demais...
Mas enfim... Nesse dia, junto à dezenas de pacientes (que raramente ficam impacientes frente a demora) estavam sentados na sala de espera três figuras, que por incrível que pareça sofriam de algo há muito enunciado, curiosamente tinham chegado ao mesmo tempo e sentado um ao lado do outro. Ficavam de cabeça baixa, e vez ou outra arriscavam olhar de canto de olho para o outro ao seu lado, administrando o clima tenso que lembrava o corredor da morte, a sentença final ou a espera pela absolvição dos pecados.
De repente, indo contra a lógica instituída, um deles resolve quebrar o silêncio fúnebre proferindo uma sentença que encadeia o início de um diálogo. – Será que esse doutor aí nos atende logo? Preciso voltar rapidamente para meu trabalho...
– Não sei não. Você sabe como é o serviço de saúde no nosso país, mas não se preocupe acredito que ele irá atestar seu dia. O paciente ao seu lado responde.
O terceiro indivíduo segue com o seguinte comentário: – Se fosse você não ia acreditando tão cegamente nisso não, esse doutor aí é muito rígido, dependendo do jeito que ele olhar para você pode ser que nem dê atestado nenhum. Por outro lado, se ele achar que você está mesmo mal com certeza irá afastá-lo de vez, por você na caixa.
– Afastar? Por na caixa? Não! Nem me fale uma coisa dessas, não posso deixar meu trabalho, não terminei ainda o que tenho por fazer e olha que estou há anos tentando acabar... retruca o primeiro paciente, agora já arrependido de ter começado o diálogo.
– Quer saber, você que é o culpado por isso! Agora além de não terminar o trabalho corre o risco de nunca o terminar, você deveria estar feliz com o que faz sabia? Qualquer trabalho é um bom trabalho. Por que está aqui? O que quer do doutor? Indaga o segundo paciente.
– Quero que ele ajude entender minha tristeza. Não consigo ficar feliz com meu trabalho, parece que sempre tenho que recomeçá-lo, que sempre tenho que fazer a mesma coisa, parece que nunca vai terminar. Este doutor tem que ajudar! E vocês? Porque estão aqui?
– É colega, também estou descontente com minha vida, não consigo sair de minha situação, todo dia sofro, sou castigado e não consigo sair de minha condição. Tudo isso porque quis ser rebelde, quis ajudar outras pessoas. Agora estou cumprindo pena, por minha culpa... olhe as correntes em meus braços e pernas, olha meus ferimentos, tudo minha culpa... sou condenado por querer esclarecer os outros. Diz o segundo paciente, mostrando inclusive os graves ferimentos sob a camisa.
O terceiro que já estava envolvido na conversa continua: – Pior é meu caso! Olha que nem sei mais o que fazer, já pensei em suicídio, em furar meus olhos, cortar minha língua... matei meu pai e casei com minha mãe, quando ela descobriu a verdade... que droga... se matou também... Tenho me sentido muito culpado e todo mundo me culpa, ninguém lembra que fui abandonado quando nasci, cresci com pais adotivos, que não tive outra alternativa...
O primeiro paciente assusta-se com os problemas dos indivíduos ao seu lado e, sem saber o que dizer, tenta dar uma palavra de consolo: – Triste história amigo. Espero que o doutor possa te curar dessas coisas... E é interrompido pelo segundo paciente que retruca:
– Curar? Não sei se essas coisas tem cura, e nem sei se esse doutor pode curar-nos. Vocês sabem das histórias de pessoas que passam com esse doutor? A última história que soube é que dois dos pacientes dele se mataram e uma outra nunca mais se recuperou do abandono do marido. Os que morreram eram bem jovens inclusive, era uma moça e um rapaz... o rapaz cometeu suicídio, quer dizer, na verdade afogou-se em um lago, dizem que apaixonou-se por sua própria imagem e tentou abraçá-la; após ocorrida a tragédia descobriu-se que existia uma garota enamorada por ele, parece que tinha problema de fala e nunca dizia nada por si, só repetia o que os outros diziam, quando soube do ocorrido subiu até uma ponte e jogou-se entre os carros, muito triste. Já a mulher abandonada parece que teve haver com o fato dela ter desrespeitado o pedido do marido de nunca olhar para ele...
– Que pedido absurdo! Interrompe o primeiro paciente.
– Pois é! E olha que ela tentou ver o rosto quando ele estava dormindo mas deu azar de justamente no momento em que acendia a luz do rádio relógio este iniciou a despertar... depois disso ele largou ela e nunca mais a coitada ficou boa da cabeça, vive tentando encontrar sentido e razão para as coisas.
– Nossa! Fiquei preocupado agora com o que você me disse. Não teve ninguém que curou-se com o doutor? Diz o primeiro paciente novamente, agora voltando a olhar para o chão.
– Calma colega, seja guerreiro, é claro que já houveram curas! Mas não é fácil! Pois como disse, o doutor não é nada flexível, tem que ser do jeito dele, quem conseguir se encaixar nas regras dele está curado, caso contrário... bom você já ouviu as histórias...
Nisso interrompe-se a conversa. Pois um tumulto inicia-se no corredor. Vários enfermeiros correm até a sala do doutor, com correias, injeções e uma maca... de repente, sai uma mulher sedada, amarrada, acompanhada de um indivíduo alto, forte, que grita para os enfermeiros: – Maldito Erasmo de Roterdã que fica incentivando esse tipo de gente... não deixem mais que essa mulher saia daqui, prepare a sala de cirurgia pois teremos trabalho pela frente... Em seguida vira-se para os pacientes e fala: – Não se preocupem, vocês já serão atendidos... pela ordem de chegada.
Os pacientes se entreolham novamente e o primeiro indaga: – Chegamos todos ao mesmo tempo, será que o doutor poderia dizer a ordem de chamada? Pois estou atrasado e preciso trabalhar ainda hoje... É interrompido pelo doutor que imediatamente responde: – Vamos ver se o senhor poderá trabalhar, quem dirá isso será eu. E fecha novamente a porta.
A recepcionista que estava observando a cena exclama: – Não se assustem com o que aconteceu, essa paciente é muito complicada, é a senhora Loucura, ela não tem jeito, já o doutor Procusto... bom, ele é assim mesmo! Qual seu nome rapaz?
Meu nome é Sícifo senhora, serei o próximo?
– De acordo com a ordem de fichas os próximos serão os senhores Prometeu e Édipo... é, pelo visto infelismente o senhor será o último a ser atendido; quanto as pessoas desequilibradas que o senhores estavam fofocando, o velório está sendo aqui ao lado, podem procurar pela mulher que fora abandonada por Eros, seu marido, seu nome é Psiquê; ela poderá mostrar onde estão os corpos de Narciso e Eco.
Aluísio Lima.
Psicólogo e Professor da Universidade Federal do Ceará.
Contatos: aluisiolima@hotmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Aceita um café?!