*Ó parece transver a Psicologia. E a Psicologia, tal como fui
apresentada, já esta sendo uma multidão de outras coisas que extrapolam o seu
nome. É assim que a poética bruta de Ó me convoca a pensar o pensamento que eu
nem tinha/tenho da Psicologia. E eu aqui com tudo isso? E tudo isso é o que?
Psicologia do enfrentamento. Ele começa pela linguagem, questão nodal do
pensamento. E pensamos pela língua? Signo? Somos linguagem? Operamos por quais
vias do pensar? Língua, letra, grito, corpo. Psicologia da corporeidade. Aí
está também a nossa relação com a verdade. Dos homens, do mundo, das gentes, do
nada.
E existe Psicologia sem a noção de verdade? Nuno Ramos me
exercita a pensar que as perguntas precisam ser outras, experimentar resistir
ao modelo explicativo causal e partir para a compreensão dos liames da
Psicologia, que são fundos (não de ocultismos) mas de profundidade, de
sensações, de vida sendo vivida. Ele nos diz “Mas talvez não importe tanto fabular sobre a origem da linguagem
quanto compreender a enorme cisão que ela causou. Pois uma vez amarrada esta
corda entre todos, uma vez expulsos ou mortos aqueles que não quiseram valer-se
dela, não há mais possibilidade de retorno pois é próprio da mais estranha das
ferramentas, da mais exótica das invenções (linguagem), parecer tão natural e
verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada.” (P. 22)
Que sinais fora da linguagem são possíveis para operar a
Psicologia? Essa é uma pergunta que me fiz lendo este livro. Entendendo fora
como aquilo que podemos olhar, habitar e resistir, criando estratégias de
enfrentamento e suspeita. “(...)
estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou
inverossímel em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir
indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca completamente qualquer ligação
com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a
uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o
sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro fechado.” (P.
23)
Isso que Nuno Ramos desenha faz ainda mais sentido nesse
instante particular de minha vida. A pergunta que tenho feito nas disciplinas
de TTP (sobre clínica, crítica e nossa vida mundana) é: o que nos finca no solo
instransponível das nossas experiências? Como senti-las de outro modo,
degustando cada insosso comprometimento de nossas vísceras, pêlo e movimentos
com tudo isso? Daí, a partir dessa potência do menorizar tenho visualizado
novas vazões para se fazer Psicologia.
E a leitura continuada e bagunçada de Ó vai tecendo mais uma
estranheza: como o mundo desgrenhado (túmulos, galinhas, hidrelétricas, manias,
espelho, teatro, erotismo ...) produz imagens de repetição e sentido? Do que
aparentemente não cabia acha-se espaço, lucidez e mudança. E isso também é
aprendizado para a Psicologia que fazemos nós. Diferença e repetição. O começo
que vira avesso, fim e diferença, recomeço, nova história, possibilidade, novo
modo de fazer. A mudança que gera criação, companhia, vontade, estado de graça,
medo, coragem, tempo, Psicologia.
Ó por isso é transgressor, escancara os adoecidos pelo tempo;
eu sendo vista tão claramente na imagem de Nuno Ramos sobre a existência. “Haverá regiões da nossa própria trincheira
que não dominamos?” É um livro que conversa com você, que te exige pausa. E
o que a Psicologia me propõe a ser? O que ela me exige? O que eu exijo dela? “Como saber? Quem vai colocar sua cabeça pra
fora e descobrir?”
Ó demite as técnicas porque sabe que o existente caminha
caminhando. E que se apre(e)nde aí nesse espaço que não foi antecipado,
descrito e planejado. É a taquicardia do susto. A imagem que Nuno Ramos vai
construindo no decorrer do livro faz total sentido para pensarmos o curso de
Psicologia (micropoliticamente) e o Mundo, Brasil, Ceará, Sobral
(macropoliticamente) imbricados ao mesmo tempo; o desejo da Psicologia-ciência
e a vaidade da Psicologia-mercado.
É um livro que desenha imagens para a formação humana, que
transgride a lógica perversa do tempo-máquina, do tempo-valor e do tempo-alma.
Ele nos vomita: “Defecamos tempo. Quem
sabe apodreceremos tempo. Relógios são apenas os ícones mais explícitos:
pontes, prédios, colunas, são todos dínamos de tempo acumulado, altares do
grande sacrifício.” (P. 121)
O interessante é que Ó também trata de forças, das que temos
e das que ficaram pelo caminho. O belíssimo fragmento Canhota, bagunça, hidrelétricas retrata o aprendizado rigoroso dos
trajetos e a nossa absurda vontade de encaixe e direcionamento (o que diz dos
lugares que vamos ocupando ao longo da vida e das percepções que vamos juntando
em nossas lentes). Fiquei me perguntando quando, de fato, nós oferecemos esse
espaço entre a bagunça e a promessa de harmonia? Como uma Psicologia é possível
entre esses espaços de desordem?
Fico pensando sobre quais espaços criamos para favorecer
essas outras operações de percepção e seqüestro ao que já está anunciado. Algo
que culmine na liberdade da catástrofe, daquilo que “(...) abre os seres, tornando-os essencialmente relacionais, daí que
os corpos e os objetos se despedacem, aceitando novos contornos, e que haja
solidariedade e quebra de distância entre as pessoas.” (P. 117)
E concluo dizendo o que pensei todos esses dias: como um
livro de arte (mesmo que ele não se entregue as catalogações) pode ensinar mais
do que todas as Psicologias reunidas em um só lugar?! E aqui abro espaço para
que uma série de questões sejam feitas: Que Psicologias? Que modelos de ensino?
O que o livro ensina que difere? Que diferenças desejamos? Enfim, questões que
são ponto de partida para nós.
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RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2009.
*Texto apresentado originalmente para o PET Psicologia UFC - Sobral.
Lendo esse belo texto me envaideci de te ter como amiga e mais de ter como companheira de profissão (: Já sinto saudades do nosso PET... !
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