3 de jan. de 2012

Senhora


Hoje, de sobressalto, recebi uma visita.
Alguém tocou insistentemente a campainha como se trouxesse consigo todas bagagens do mundo e muita pressa nos nervos.
Estava sozinha em casa, por isso me encaminhei a passos curtos até o portão e quase que constrangida por alguma culpa perguntei baixinho quem era.
Era uma senhora de uma voz viril cheia de azedume e que com sobressalto balbuciou do outro lado uma comunicação.
Perguntei novamente para confirmar o timbre que transpassava o portão, seria de alguma conhecida ou de alguma estrangeira que passava por ali?
Do outro lado a voz embargou um bocado e como se implorasse um cuidado foi atestando familiaridade.
- É a Ester! Não tá reconhecendo minha voz, Lúcia?
O constrangimento pairava sobre mim mais uma vez, como pudera esquecer que esperava Ester desde às 14 da tarde?
Nesse momento tentei arranjar todos as desculpas possíveis pra justificar meu embaraço. Não pra ela, nem em voz alta, mas pra mim, em tom silencioso, como se isso me eximisse do purgatório.
Abri, então, o cadeado do portão com um esforço delicado, daí comecei a empurrar aquela estrutura de ferro pesada dando espaço para as frestas do sol que apareciam do outro lado.
Ester despontou longilínea e com uma palidez sem sangue do outro lado do portão, bonita como as frestas do sol, carregada de bagagens nos braços e um vivo batom nos lábios.
Peguei alguns de seus pesos e dei um beijo tímido em suas bochechas. Ela retribuiu a gentileza e me sorriu com os olhos. Andamos juntas até a saleta inicial,deixei suas malas no sofá e voltei rapidamente para fechar o portão.
Quando retornei, ela já tinha acendido um cigarro e como que ambientada havia sentado no sofá e esparramado seus pés sobre a mesinha de centro.
Perguntei se lhe faltava alguma coisa, um café ou um gole d´água, ela negou com a face e pediu apenas que eu sentasse ao seu lado.
Ainda absorta preferi sentar na cadeira oposta ao sofá, fazia tempo que não a via daquele jeito, tão de perto e em bo ne ca da.
Ela me olhou nos olhos e perguntou se eu sentia medo de sua presença.
Afeita à sinceridades, dessa vez respondi com meias palavras e desviei meu olhar ao dela por uns instantes, enquanto ganhava tempo para inventar o assunto seguinte.
Ester foi chegando perto novamente, tão perto que me bambeou as pernas.
Olhou-me firme, segurou minhas mãos e disse com o habitual perfume que eu continuava terna e provinciana como aquela cidade.  
Ela me acarinhou os cabelos e me perguntou se tínhamos ainda alguma coisa em comum.
A olhei firme e respondi que o que tínhamos em consonância era apenas aquele teto, que agora nos abrigava na mesma proporção.
Ela me provocou em silêncio, tirando dos dentes o mais cínico sorriso que há tempos não me dilacerava e que todos esses anos não me fez falta alguma.
Ester sabia que era única no mundo nessa arte e por isso mesmo fazia questão de exercitá-la em demasia.
Perguntou com um fio de remorso se eu não sabia chamá-la de outro nome. Respondi repetindo seu nome dedilhado e minha convicção foi inteira e suficiente para cessar as dúvidas que ainda restavam.
Ela disse mais algumas palavras que eu por distração não escutei e depois se levantou retumbante do seu pedestal. 

 - Senhora, senhora!

Acordei de agonia daquela distração e com uma baita vertigem feroz. Tomei uns goles de água e permaneci inerte sobre a mesa de madeira pesada do café. Ressucitei e me levantei dali cheia de sangue nos músculos rumo às ruas daquela cidade que não eram mai minha e que havia ficado tão longe em minhas memórias. 
Segui pela intuição que ainda me restava, foi quando me deparei com aquela árvore frondosa que não me deixava ludibriar. Era um Juá maravilhoso que eu sentia sobreviver trinta e sete anos somente naquela calçada e em nenhum outro lugar do mundo, pelos mesmos incertos motivos que mantém alguém vivo mesmo depois que a morte chega.
Depois dessa visão não tive mais sangue pra aguentar a travessia,constrangi-me pela força do Juá.
Talvez amanhã eu retorne. Hoje não.
Era como eu me encorajava todas as manhãs.


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Tela: Cafe Scene, 1946. Raphael Soyer.

2 comentários:

  1. Thamila, sua talentosa! Trazendo criatividade as nossas vidas
    bjo
    wallena

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  2. Wall,
    seu comentário me encheu de alegria.
    Por ser de você, a quem eu tenho um apreço imenso.

    beijo,querida.

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