24 de set. de 2012

Anatomia de um instante


Estou a começar. A condição da luz está a favor, o copo com água pela metade já faz marca na madeira, a música de suave estridência já se põe a tocar e minha mãos livres, presas a uma caneta, começam a principiar seu ofício.
Pelo sangue que corre nos vasos sinto que a minha cabeça trabalha mais que minhas mãos. Mas sustento que é de algum outro lugar marginal que martela o princípio da minha ideia. Uma posição dentro de um cenário, uma cor de cabelo vibrante, um lapso de memória, um cordial homem viajante para assumir o gosto do personagem, a invenção de um poste no meio do caminho, uma tosse, uma perna dançante. (...) Enfim, elementos que darão carne e vigor para essa ilusão. 
E apesar de já ter começado, sinto como se desejasse um início mais mirabolante, algo que já anunciasse uma ocasião, que despontasse um culpado, uma amante, um vilão. Falta entendimento. Apago. Começaria de outro tom, com náuseas escuras, com um vento forte, com uma radiola tocando uma música incrédula e agonizante. Isso, isso seria um começo. Espalharia pelo chão uns jornais do amanhã e deixaria que eles engolissem o espaço, com suas notícias, com seu obituário e com seus classificados.
E já com luzes brandas ela pegaria um pincel generoso em grossura e começaria a dançar com o som tocando ao fundo. 
Gosto da ideia dos seus pés nus, sujos, fazendo um esforço pra pegar o pincel do chão. Gosto do pincel vacilando no chão, caindo em todas tentativas, rindo do pé que o tenta. Gosto mais ainda do ritmo ofegante que mantém o que fraqueja. Coragem!
Ela não se abate, rasteja com os pés a tatear um outro instrumento que a possibilite sair da monotonia das letras. Presa naquele cubículo com letras arranjadas em preto e branco não consegue mais ter amor pelas palavras. Só sente vertigem pelas letras dispostas de futuro e fincadas de uma velha idade. 
No canto direito haverá algumas tintas. Frescas. Em baldes aleatórios e desiguais de tamanhos. Ela pisa em um desses baldes e tintas respingam ao seu redor. Faz uma cara de gozo pela sensação de tocar seus pés desnudos e sujos naquela poça fresca, líquida e em temperatura ambiente.
Gloriosa, retornará ao pincel com um destemido olhar de superioridade. Reinando sobre aquele instrumento toda sua raiva e desprezo.
Venci, dirá com os gestos uma única vez. Mesmo que seu inimigo jamais compreenda sua linguagem de orgulho frente um anterior fracasso. Esse é um divertimento que pertence tão somente às almas que um dia foram provadas, esquecidas, ignoradas ou diminuídas. Passo de uma dança que só satisfaz a si.
A sua monotonia voltou tão ligeiro quanto a tinta secou no papel e podia-se ver entre as brechas que não estavam pintadas ainda muitas letras em preto e branco opulente, mesmo que agora incompletas, rabiscadas e encarnadas de respingos raivosos. Apagaram-se? Podia-se dizer que vencido estava o amanhã?
Não se sabe e não se nota ânimo algum em sua figura. Ficou suspensa como quem vence uma batalha anunciada.
Já o pincel, inerte como uma letra vazia ou como uma tinta isolada respingada no chão, continuou a afrontá-la e a remoer o seu fracasso (mesmo que sem nervos para isso).
Ela pensou em desafiá-lo novamente, só pra sentir seu sangue escorrer pelas veias com algum sentido pra viver, mas já estava tarde e a tinta da caneta também já falhava.

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Ilustração de Erika Kuhn - http://erikakuhn.blogspot.com.br/
Música de fundo: http://www.youtube.com/watch?v=WHRR7ZnIcMs

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