Ontem [12/04] assisti o espetáculo teatral A galinha degolada ,uma adaptação de conto homônimo do uruguaio Horácio Quiroga (1879-1937), produzido pelos grupos de Florianópolis Persona Teatro e Teatro em Trâmite.
O espetáculo, desde o início, nos acorda com os acordes de um violão doído e nos convida a conhecer a história do casal Mazzini-Ferraz e concomitantemente de todos que dão vida a essa família que, de algum modo, são coextensivos a essa encarnada história. A peça é incisivamente cirúrgica e de audaz ironia, convoca o espectador a lampejos sobre cotidiano, estratificação social, preconceito, culpa, amor, loucura, perfeição, pureza, isenção, exclusão, aparências ...
Jefferson Bittencourt, que dirige o espetáculo e a belíssima trilha musical da peça, traz para o palco instante de fotografias congeladas, humanas, firmadas em segundos que parecem não cessar ou que no desejo dos fotografados não deveriam, pois dão instantes de glória, beleza, perfeição e dor,fardo,culpa. A cênica das imagens compõe um jogo inteligível para a miséria plástica daquela família, que [sobre]vive no fôlegos das expectativas. A expectativa da chegada primeiro filho. A expectativa de ele ser uma criança “normal”. A expectativa de o próximo suprir à falta do primeiro, a expectaiva de esperar os terceiros, a expectativa de que algo supra a falta do que é viver, de ter que criar filhos idiotas (como Quiroga usa no conto original e assim foi mantido no espetáculo), a expectativa de ainda ser possível ter expectativa.
É esse o maior enlace do casal Mazzini-ferraz, que Quiroga no conto original e Jefferson Bittencourt no teatro ecoam tão profundamente aos nossos ouvidos: essa é a miséria de viver tendo que sempre superar as expectativas. Expectativas inundadas pela sociedade, transfiguradas pelo corpo hipócrita dos que esperam a perfeição e pelos corações inferiores que culpabilizam os outros pela desgraça íntima.
Os filhos "idiotas" do casal são idiotas pra quem? Quiroga diz no conto: “Como é natural, o casamento pôs todo seu amor na esperança de outro filho. Nasceu este, e sua saúde e seu riso límpido reacenderam o futuro entinto. Porém, aos dezoito meses as convulsões do primogênito se repetiram, e no dia seguinte amanheceu idiota.” É essa pergunta que devemos nos espetar durante toda peça. Como alguém amanhece idiota? A idiotia encarnada nos personagens de Quiroga não são partículas de realce, com função de despertar comoção no leitor e na platéia. A idiotia é real, nós a promovemos, segregamos famílias por isso, rimos descomedidamente de quem sofre e se sofremos podemos estar na mesma linha tênue do casal protagonista.
A doença mental, a loucura ou quaisquer que sejam as demais diferenças que nos fazem amanhecer idiotas por aí, para essa sociedade que está embevecida pela necessidade burguesa ocidental de perseverar seu ideal imaculado de vida familiar em sociedade, é que delineiam a crítica de Quiroga e da peça em questão,além de outros trâmites.
A peça continua, outros atos delineiam a história desse casal, da empregada e dos quatro filhos "idiotas" que sobrevivem isolados, “quase todo o dia sentados de frente para o muro, abandonados de qualquer remota carícia.”
Não vou contar o resto, afinal hoje ainda tem espetáculo e a curiosidade é um alimento saboroso para essas ocasiões. Só digo que após o espetáculo a equipe abre um diálogo delicioso, contam curiosidades da produção, a história da peça, compartilham as impressões, abrem para perguntas, dúvidas, enfim... Não poderia ter um desfecho mais aconchegante.
Referências
QUIROGA, H. A galinha Degolada. Coletânea: Contos de Amor, loucura e morte.
Fotografias de Cristiano Prim
Serviço
O QUÊ: Espetáculo teatral "A Galinha Degolada".
QUANDO: Dias 12 e 13 , às 20 horas.
ONDE: Teatro São João | Sobral-ce
QUANTO: Inteira 2 Reais | Meia entrada 1 Real.
CONTATO: http://theatrosaojoaodesobral.blogspot.com/
O cenário cultural sobralense deu uma melhorada considerável depois da entrada do Veveu. Pena que eu não tô tendo tempo pra aproveitar. =(
ResponderExcluirE pra quem, talvez, nunca vai assistir?
ResponderExcluirEu ficaria tão alegre se soubesse o final.
Me conta o que aconteceu com os filhos "idiotas"?
E ah, expectativas doem muito.
Rê, vou fazer um post sobre o fim.
ResponderExcluirps. especialmente pra você, que mora longe e parte meeu coração de saudade. (:
"Revi" a apresentação depois que li thami, mas já foi outra coisa...
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